A Letter from Óbidos

A Letter from Óbidos

by Alexandre de Sousa

The Letters Page, Vol. 5 comes to you as a collection of translated letters written by authors based in UNESCO Cities of Literature who are, like Nottingham, celebrating ten years of their City of Literature status. We have contributions from Barcelona and Baghdad, from Lviv and Ljubljana, and from many other locations across the globe. Space constraints prevented us from publishing the original, untranslated letters as part of our craft-bound book, so instead we present them here in digital form for your perusal.


In this letter, Alexandre de Sousa reflects on how the enchanting landscapes and wonders of his hometown, Óbidos, merge with a community of writers to encourage beauty and a sense of the unknown in local literature. – Jodie Cave


Óbidos, 08 de agosto de 2025 

Queridos escritores e leitores de Nottingham, 

Saudações da outra margem da literatura, onde o mar canta histórias antigas e as pedras ouvem a voz dos poetas. 

Chamo-me Alexandre de Sousa e escrevo-vos da vila medieval de Óbidos, que se ergue entre o Atlântico e as serras suaves da região oeste de Portugal, onde as andorinhas rasgam o céu escrevendo versos de azul e os campos pintam de muitos verdes as planícies do litoral. Sou escritor e habitante de uma Cidade Criativa da Literatura da UNESCO – uma distinção que, mais do que um selo de reconhecimento, é um compromisso profundo com a palavra viva, com a memória partilhada e a constante reinvenção da linguagem. 

Óbidos é uma vila pequena. Foi prenda de rainhas e tem o tamanho exato de um segredo. Mas como todos os bons segredos, carrega dentro de si um mundo. Vista de fora, é paisagem de um conto antigo: muralhas medievais que abraçam o burgo como braços protetores, ruas de pedra branca, gasta pelo tempo e pelas solas dos sapatos, com flores nas janelas, igrejas que ainda respiram o silêncio dos monges e o canto dos crentes. Olhada por dentro, é uma casa com muitas portas. Cada leitor que chega entra por uma delas. Cada escritor que parte deixa uma nova entreaberta para quem vier a seguir. 

Hoje, em Óbidos, o tempo tem duas velocidades. A da vida que corre lá fora – com os turistas a fotografarem as ameias do castelo ou a provarem a ginjinha em copos de chocolate. E a do tempo interior, esse que só os livros sabem medir. Gosto de caminhar pela Rua Direita, como quem passa por uma biblioteca ao ar livre. A Livraria de Santiago, instalada numa antiga igreja, é talvez o símbolo mais visível desta transformação de pedra em papel ou de fé em leitura. Mas há mais. A emblemática biblioteca municipal – Casa José Saramago, pequenas livrarias em cada esquina, cafés literários, galerias, exposições, escolas onde se escreve e se lê como quem semeia. 

Esta semana, por exemplo, o sol continua a incendiar as tardes e os encontros de leitura acontecem nas sombras das arcadas. Vamos preparando, em conjunto com escolas, editoras, autores e leitores, o FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, que acontecerá já em outubro. O FOLIO é mais do que um festival. É o momento em que a vila inteira se transforma num livro vivo. As casas abrem-se a tertúlias, os muros tornam-se telas, os habitantes tornam- se personagens e os escritores, cronistas atentos deste teatro de papel.

Este ano, os temas centrais giram em torno da palavra “Fronteiras” – sejam elas geográficas, linguísticas, sociais ou imaginárias. Materiais ou espirituais. Como se a literatura fosse a arte de atravessar o que separa e unir o que é disperso. 

Viver numa cidade da literatura é, por vezes, caminhar entre livros invisíveis, debaixo de uma incessante chuva de palavras, sob a ameaça do pensamento e da imaginação. Em Óbidos, há um mapa poético da vila que escrevi com o meu amigo José Santos. Em vez de ruas, tem versos. Em vez de monumentos, tem memórias. Convidamos os visitantes a perderem-se de propósito porque aqui quem se perde, acaba sempre num encontro. Cada praça é um capítulo, cada fonte uma nota de rodapé, cada gato uma alegoria. 

Leio. Leio devagar. Gostava de ter tempo para ler mais. Neste momento, tenho nas mãos Baudolino de Umberto Eco, um autor que sempre me desassossega. À cabeceira, A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge, é um regresso 30 anos depois, uma obra que fala de silêncios coloniais e da persistência da memória. Gosto de livros que me inquietam. Que não acabam quando os termino. Querem sempre conversa de volta. 

Tenho algo para contar que talvez vos surpreenda. Por aqui, também se lê com os pés. Promovemos projetos de itinerários literários que convidam as pessoas a andar, a ouvir, a olhar. Criámos rotas poéticas, oficinas de escrita nas escolas, clubes de leitura nas aldeias vizinhas. A literatura tornou-se uma prática social, não é um luxo – é pão e vinho, como os que se partilham à mesa. Escrevemos cartas a partir das aldeias, cartas que atravessam fronteiras. Como esta que vos escrevo agora. 

Nottingham e Óbidos são cidades irmãs na rede das Cidades Criativas. Partilhamos esse privilégio raro de viver em lugares onde os livros não estão apenas nas estantes – estão nas paredes, nas ruas, nas vozes das pessoas. Imagino a vossa cidade, com a sombra ainda viva de Lord Byron e a pulsação moderna dos Poetry Slams, dos romances urbanos, dos projetos comunitários. Imagino leitores em bibliotecas de tijolo vermelho, escritores que escrevem sobre fábricas e florestas, alunos que descobrem nas palavras escritas uma forma de dizer o que o mundo ainda não sabe escutar. 

Gostaria de vos contar que viver numa cidade da literatura é também uma forma de resistência. Contra o ruído, contra o esquecimento, contra a pressa. É resistir com uma caneta, um poema, uma história contada à beira do lume. É fazer da palavra um lugar habitável. Em Óbidos, acreditamos que a literatura muda o mundo. Não de forma grandiosa, mas subtil. Como uma brisa que inclina a cortina, como uma frase que se repete na cabeça durante dias, como um nome que não queremos esquecer. Aqui, aprendemos a escutar. Escutamos os livros, as pessoas, os fantasmas das vozes que escreveram antes de nós. Ser escritor numa cidade literária é ser jardineiro do invisível. Viver em Óbidos é ter todos os dias uma folha em branco diante dos olhos. À nossa espera. 

Por isso, esta carta é também um convite. Venham. Tragam os vossos livros, as vossas palvras, os vossos sonhos. Ou cheguem de mãos vazias, pois por cá há sempre uma história à vossa espera. Quem sabe, escrevemos a duas mãos. A três ou quatro. 

Com amizade literária, 

Alexandre de Sousa 
Escritor residente da cidade literária de Óbidos Rede de Cidades Criativas da Literatura – UNESCO  


The Letters Page, Vol. 5, which features the English-language translation of the above letter, alongside eight others and a an introduction from Jon McGregor, is now available to purchase here.

Featured image credit: Pexels.com

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